A Cervejaria Dogma foi questionada sobre o uso da imagem de uma mulher negra escravizada no rótulo da cerveja Cafuza. Foi quanto me questionei também: por que eu não vi isso antes?
Se questionar é o que muitos de vocês, pretos ou brancos, fizeram ao ver a discussão sobre a cerveja Cafuza tomar corpo nas redes sociais.
Mas não foram todos. Conversando com amigos, e em grupos de whatsapp cervejeiros, percebi que era importante falar, trazer informação de um ponto de vista crítico, mas principalmente construtivo. Quem olha os comentários pode perceber que há discussões acaloradas, gente defendendo o rótulo, minimizando ou ridicularizando o fato de usar uma mulher negra e escravizada pra vender cerveja, ou dizendo que há interesse por trás da denúncia de Marina Amaral. Mais uma vez, a vítima se torna vilã e a caravana segue seu ritmo.
Vocês se lembram dessa foto tirada pelo Alberto Henschel que eu restaurei e colorizei?
Pois é, alguém achou que seria uma boa ideia transformar o rosto dessa mulher escravizada, violentada, explorada e subjugada em imagem ilustrativa de lata de cerveja. pic.twitter.com/3cdGMFb4eY
— Marina Amaral (@marinamaral2) June 26, 2020
Nunca bebi a Dogma Cafuza por pura falta de oportunidade. Mas quando vi esse rótulo pela primeira vez, há anos atrás, não me atentei à nenhum detalhe, muito menos, ao trabalho de péssimo gosto da Dogma. E por que? Porque não fomos criados para enxergar o racismo que nós mesmos praticamos. Nós mesmos, inclusive negros, como eu.
Ninguém nasce racista, mas se torna
A boa notícia é que todos podemos (e devemos) aprender a não ser racista, e enxergar a ponto de entender que já houve sofrimento demais até aqui. Muito sangue foi derramado. Não precisamos e nem devemos permitir que isso continue, e nunca é tarde pra mudar. Mas é preciso querer!
Claro que esse não é um trabalho fácil. Vivemos em uma sociedade que foi construída de forma machista, racista, misógina, e somos todos produtos disso. Hoje, mais do que nunca, enxergo isso claramente e cada vez tento mudar mais minhas atitudes. Se colocar no lugar do outro, entender seu lugar de fala é fundamental pra isso.
Como podemos opinar sobre algo que não dói em nós mesmos?
Um branco não é um preto, não tem como sentir o peso de todos os anos que um povo foi oprimido, deixado de lado, e ainda assim, sobrevive e luta até hoje. Mas o homem e a mulher não negros podem se informar, entender seu lugar de fala e o do outro, e trabalhar pra diminuir o que foi construído tão bem ao longo dos anos que cega todos, inclusive muitos negros, a ponto de vermos uma mulher que tratada como animal, ser usada num rótulo de cerveja e simplesmente virar paisagem.
Acreditem, cheguei a ouvir comentários onde a preocupação maior era com a imagem da cervejaria, o prejuízo financeiro da marca e não o ato de parar e pensar no ser humano que foi desrespeitado, e com ele, mais uma vez, um povo inteiro.
Falo de mim também, pois como já disse, quando pude, não olhei esse rótulo com os olhos que deveria. Mas em vez de desviar o olhar da cena pra olhar o barulho da discussão fora do foco, tentei entender quem foi aquela mulher, o que ela representa dentro da sua comunidade e como dá pra mudar isso daqui pra frente, no meu dia a dia.
Tenho falado sobre racismo no meu IGTV e trazido pessoas incríveis pro debate.
Convido todos a ver mais aqui. Tem sido um exercício doloroso, mas gratificante.
Racistas não tiram férias. Racistas não enxergam onde dói no outro. Racistas nunca acham que ofenderam porque não tem noção do passado de um negro, de quão difícil foi pra ele sobreviver na senzala, nos guetos, que hoje são os subúrbios, as periferias, as favelas ou nas faculdades e empresas onde não nos sentimos incluídos nem representados. Não é com eles. Racistas não se acham racistas. E quando um grito ecoa na multidão soa como birra, mimimi, não como direito. O branco entende que a visão de mundo dele, branco, é universal enquanto a do preto é de uma tribo. É menor. Tá Errado! E muitos negros, infelizmente, acabam entendendo assim também, seja por opressão ou falta de informação.
Samuel Emilio, do Diário Antirracista:
Como lutar contra o racismo nosso de cada dia?
Brancos e pretos estão inseridos nessa cultura construída com a exclusão dos pretos até aqui. Mas cada um de nós, pretos ou brancos, pode construir algo diferente individualmente, começando pelo seu dia a dia. Começando com atos simples, como se olhar no espelho e se colocar sempre no lugar do outro. Então, quando um grito por justiça surgir na multidão, em vez de correr com a manada, fiquem no foco. Estudem, entendam, sejam humanos e se coloquem no lugar do outro. Talvez assim cada um consiga mudar a própria mentalidade, e assim, sem violência, mas com informação e consciência, cada um seja menos racista a cada dia, e convença outros a fazer o mesmo com seus pares.
Muito sangue já foi derramado
Mas se esconder nesse discurso é ignorar o poder individual que temos hoje de influenciar positivamente, educar, fazer pouco a pouco pra chegar longe. É fácil? Obvio que não! É possível? Vivemos um momento único em todos os sentidos. Nunca tivemos tanto acesso à informação, seja online ou offline. É preciso acreditar, tentar, afinal, hoje somos todos influenciadores e compartilhamos do cafezinho à piada ruim, por que não fazer o mesmo com a informação que muda, educa e transforma?
A história mostra que a maior religião do mundo não acabou com a morte de seu líder. Ao longo dos anos, o cristianismo cresceu em pequenas rodas, no boca a boca, escondido em reuniões pequenas, mas com propósito e frequência, se expandindo por centenas de vilarejos e territórios e quando seus opressores se deram conta, restou ao seu imperador não só adotá-lo, mas se batizar nele. Grande virada? Trabalho de formiga, amigos. Sem matar ninguém… pelo menos até ali.
A Dogma se desculpou, e agora?
A cervejaria Dogma disse que até aquele momento não tinha noção do que fez o que, infelizmente, é como pensam muitas pessoas ainda. Mas isso pode mudar. Comece por você mesmo. Tenha ações positivas no seu dia a dia e ensine outros a fazer o mesmo. E quando algo como o que houve com a Dogma acontecer, não levante a bandeira e pare por aí. Seja efetivo com você, em seu trabalho, na sua família, sua vida. Cobre mais inclusão, mais debate, mais diversidade e visibilidade ao assunto.
Vamos cobrar a Dogma?
A Dogma informou que vai trazer mais espaço para falar sobre o racismo. Boa ideia? Ações positivas são muito bem vindas sempre! A Dogma é uma cervejaria que sempre se destacou no segmento pela ousadia e inovação. Se entender a oportunidade que tem de fazer a diferença, ser inclusiva, frequente e ir além de uma ação pontual pra se retratar, pode realmente provar que aprendeu muito com o que houve e escrever uma nova história.
A cervejaria pode começar olhando um exemplo de luta dentro do próprio setor, através da Cervejaria Implicantes, de Porto Alegre. Ela é a primeira cervejaria fundada e gerenciada somente por negros, que além de ajudar a comunidade com eventos de arrecadação e fomentar a circulação do black money (dinheiro circulando entre pessoas negras), resgata figuras históricas e a ancestralidade do povo negro nos rótulos de suas cervejas. É o caso da American Brown Ale “Libertador”, uma homenagem ao abolicionista negro Luís Gama, da Session Ale “Uma Maranhense”, que homenageia a primeira escritora abolicionista do Brasil, Maria Firmina dos Reis, entre outras.
Veja também o caso da Skol, que assumiu seu passado machista e a importância de evoluir e se reinventar, e propôs ações como a ação Reposter Skol, que convidou ilustradoras para recriar cartazes machistas dando protagonismo às mulheres durante o lançamento do seu novo posicionamento, muito mais inclusive e que faz da marca o case que é hoje.
Falei sobre isso, em 2019, com a Carol Rodrigues, que fez o belíssimo trabalho de conclusão “Marketing, Feminismo e o Caso Skol”. Você pode ver como foi essa conversa, assista aqui. Como eu disse, fácil não é. Cabe à marca ter coragem e vontade de agir, mas cabe a TODOS NÓS cobrar.
O que você pode fazer já: se informar
Aqui vão alguns links que vão ajudar você a dar o primeiro passo, para que você se lembre que Vidas Pretas Importam TODOS OS DIAS, não só quando um preto morre brutalmente assassinado.
Livro “Pequeno Manual Antirracista”, de Djamila Ribeiro
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Reflexão sobre o racismo
Inclusão e educação pra transformar